terça-feira, 22 de novembro de 2016

Cordialidade no Rio Grande do Sul de 2016

Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior e Sérgio Buarque de Holanda foram destaques na década de 1930 ao criarem teorias sobre o nosso país. Para Luiz Bernardo Pericás e Lincoln Secco não foi bem assim, no entanto. Os três autores teriam sido “intérpretes do Brasil”, ao lado de Octávio Brandão, Leôncio Basbaum, Nelson Werneck Sodré, Câmara Cascudo, Paulo Freire, Milton Santos, entre outros. Todos pensadores clássicos brasileiros, rebeldes em seu tempo, e renegados pela academia. Certamente a República Velha e a Era Vargas geraram intelectuais sem par nos dias de hoje. Pensando no Rio Grande do Sul de 2016, Sérgio Buarque de Holanda é o mais atual entre os mencionados acima.
A greve dos professores mostra a atualidade de Sérgio Buarque de Holanda

O autor do imprescindível “Raízes do Brasil” foi um dos modernistas brasileiros. Quando não existia a opção no ensino superior para o curso de História, a sua formação foi em Direito. Nascido em São Paulo, viveu vários anos no Rio de Janeiro, conheceu muitos países europeus e foi fundamental para a formulação da Biblioteca Ayacucho, uma referência básica para qualquer estudioso em América Latina. Era extremamente sociável, construiu uma intensa rede de sociabilidade, era conhecido por seus amigos como uma pessoa descontraída, um brincalhão. O ano de 1936 foi o grande marco de sua vida, publicou seu primeiro livro, casou com sua companheira, inclusive nas suas aventuras historiográficas, Maria Amélia Buarque Alvin, além de iniciar sua carreira nas ciências humanas, quando foi convidado para trabalhar no projeto de Anísio Teixeira, a Universidade do Distrito federal. Era um crítico literário, jornalista, professor, sociólogo weberiano, e fundamentalmente um militante político. E a sua principal luta foi através de movimentos pela profissionalização do trabalho intelectual.

Sérgio Buarque de Holanda dialogou com o PCB, participou da Esquerda Democrática, do Centro Brasil Democrático, ajudou a fundar o Partido Socialista Brasileiro e o Partido dos Trabalhadores. Mas merecem destaque sua participação no Instituto de Estudos Brasileiros na Universidade de São Paulo e na Associação Brasileira de Escritores, que se opunha ao Estado Novo de Getúlio Vargas, ao mesmo tempo que promovia o reconhecimento do trabalho intelectual. É exatamente nesse ponto que o historiador pode ser considerado necessário e urgente para o Rio Grande do Sul de 2016.

O governo José Ivo Sartori (PMDB) está parcelando os salários dos servidores públicos do Rio Grande do Sul há vários meses. Outrora o secretário da Fazenda, Giovani Feltes (PMDB) anunciava essa medida impopular, agora o governador usa a área de comunicação para divulgar a informação. Literalmente o governador não dialoga com a população gaúcha. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) proibiu em 2015 o parcelamento de salários de servidores públicos estaduais, mas a lei parece não existir para o governador do estado “modelo para toda a terra”. Uma das categorias mais atacadas pela atual gestão do estado é o magistério. Outra medida do governo para redução dos gastos devido a crise econômica que o estado enfrenta foi aumentar as despesas com diárias e passagens do executivo. Provavelmente se Sérgio Buarque de Holanda estivesse vivo e entre os gaúchos, concordaria com a atitude de diversos professores que registraram Boletins de Ocorrência acusando a prática de tortura psicológica do governo através do parcelamento de seus salários. O magistério é uma das formas de trabalho intelectual, que o estado considera indigno até mesmo de receber salário integral. Um dos professores que divulgaram publicamente a sua denúncia contra o governo Sartori à Delegacia de Polícia foi Kauê Catalfamo, confira o seu conteúdo:

“Sou professor estadual da rede pública de ensino. No dia de hoje (31 de outubro) não pude comparecer ao meu local de trabalho visto que a quantia irrisória depositada em minha conta pelo Governo do Estado não atende as minhas necessidades de transporte e alimentação. Estando eu muito endividado, pois o atraso de salário vem se repetindo mês após mês, cheguei hoje em meu limite financeiro e emocional. Já tive cortes de luz, de água, constrangimentos diversos por conta do atraso de pensão do meu filho. Sempre priorizei o comparecimento em meu trabalho em detrimento de meu próprio bem estar e daqueles que dependem de mim financeiramente. Dito isso, pretendo através desta queixa evitar a punição com falta já que não há condições mínimas para o exercício de minha profissão.”

O “homem cordial” apareceu pela primeira vez em uma carta do poeta Ribeiro Couto, significando hospitalidade e bondade. Sérgio Buarque de Holanda usou com novo sentido, de aversão a formalidade, ao ritualismo, para explicar como a democracia no Brasil era precária. Ela deixou de ser? Quando o salário deixa de ser um direito dos professores, as reflexões da década de 1930 se tornam nossas contemporâneas, pois o estado do Rio Grande do Sul desconsidera o magistério enquanto uma profissão, desprezando a formalidade jurídica e os seus avanços.

3 comentários:

Luis Marcelo Santos disse...

Problema igual ao que vive o magistério do estado do Paraná hoje. Bastante oportuno para refletir esse contexto histórico que domina o país. Parabéns.

Unknown disse...

Obrigado, prof Luis.

Paulo Falcão disse...

O início deste artigo tem uma fluência excelente. Quando ocorre o encontro com o presente, embora eu concorde com o mérito, penso que faltou uma análise sobre o desastre gerencial que precedeu o caos. Era uma excelente oportunidade para uma demonstração bem didática da importância da responsabilidade fiscal como garantidora de estabilidade para salários, benefícios sociais e o correto funcionamento do Estado.

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